Eu sempre trabalhei muito, sempre fui raçudo. Não havia tempo ruim. Nunca me poupei. Nunca medi esforços para realizar as coisas que desejava. Meu tempo, minha energia, minha atenção, minha saúde eram insumos que eu dava de barato, commodities que eu entregava com devoção ao trabalho – como se fossem recursos ilimitados. Era só isso que eu tinha para investir. Então apostei todas as fichas.
Tive, na maior parte dos meus anos de infância e adolescência, um padrão de vida classe C. Queria conquistar coisas que não tinha. Para isso, trabalhei como um escravo. Fui o feitor de mim mesmo.
Essa estratégia me levou longe na vida. O plano deu certo. Todas aquelas horas dedicadas a trampar. Toda aquela seriedade com o trabalho. Todo aquele compromisso em entregar sempre mais e melhor a meus chefes, patrões e clientes. Toda aquela obsessão com a produtividade. Todo aquele cuidado meticuloso em não desperdiçar nada. Em aproveitar cada milímetro, cada segundo.
Cheguei onde queria. E fui talvez até um pouco além daquilo que um dia imaginei ser possível para mim. As duas décadas em que vivi em São Paulo, todos os meus 30 e 40, talvez os anos de maior produtividade e crescimento da minha vida, são o retrato dessa jornada e dos seus resultados. Na cidade em que se vive para trabalhar, em que você é a sua carreira, eu me dediquei ao trabalho.
O modelo paulistano pode ser definido numa frase: você trabalha muito para ganhar muito porque você gasta muito. Como resultado, você quase morre de trabalhar e quase não vive para gozar os frutos do seu esforço.
Por trás do modelo de vida paulistano, há um princípio que orienta a sociedade brasileira de modo geral: é cada um por si. Cada um tem que resolver o seu.
De um lado, é um convite a que você não espere por nada nem dependa de ninguém – vá lá e construa o que sonha para si. E isso é bom. De outro, é um convite ao ultra-individualismo, ao egoísmo indiferente, à absoluta falta de solidariedade e de empatia. E isso é ruim.
De um lado, a regra de que ninguém deve fazer mais pelo indivíduo do que ele próprio, e de que ninguém deve esperar que os outros resolvam a sua situação. Faz sentido. De outro, nem sempre esse modelo de descentralização das soluções é o mais eficiente. Há coisas que são mais bem resolvidas se você concentrar as iniciativas e agir coletivamente.
Trata-se de uma questão menos política do que econômica. Há uma série de realizações que a sociedade precisa empreender – em áreas como educação, saúde, segurança, transporte – em que é mais inteligente somar esforços, e trabalhar de modo conjunto, para que todos tenham acesso às mesmas benesses, do que deixar que cada um se resolva individualmente.
Nessas frentes, a ausência de coordenação simplesmente não é a opção mais inteligente. Ou contrário: a experiência brasileira, e também o que se vê nos Estados Unidos, mostra que esse caminho tem se mostrado o mais custoso e o menos efetivo. (Nos EUA, o país mais rico do mundo, por exemplo, não há um sistema público de saúde universal, o que é muito pior do que ter um sistema público de saúde universal que não funcione bem, como no Brasil).
De um lado, há a proposição liberal de que todos devem ter a liberdade e a responsabilidade de fazer da sua vida o que quiserem. E o princípio capitalista de que o melhor que cada um pode fazer pelo todo é fazer o melhor por si mesmo. De outro, há a ideia de que a civilização pressupõe a construção de sociedades mais justas em termos de distribuição de oportunidades, com menos desigualdade entre seus indivíduos, com garantias mínimas de dignidade e com mais geração de bem-estar para todos que dela participam.
E no fundo é só isso o que importa: bem-estar e dignidade para todo ser humano. Se você me perguntar qual é o meu partido, eu lhe direi: o partido do bem-estar e da dignidade. E se você me perguntar qual é a minha ideologia, o meu pensamento político, as teorias econômicas nas quais acredito, eu lhe direi: as que gerem mais bem-estar e dignidade. E se você me perguntar se sou conservador ou progressista, eu lhe direi: sou pela construção e distribuição de bem-estar e dignidade aos seres humanos.
Se alguns elementos para a construção de uma sociedade mais harmônica e funcional forem de "direita", como a ênfase na iniciativa privada para a geração de prosperidade, tudo bem. Se outros elementos forem de "esquerda", como a construção de uma rede de segurança para os cidadãos, com iniciativas de welfare coordenadas pelo Estado, tudo bem também.
O que vejo é que a vida em outros países parece ser muito melhor do que a vida que estamos levando no Brasil. E isso não tem a ver com o tamanho da economia nem com a riqueza per capita nem com a taxa de crescimento do país. Isso tem a ver com o modelo de trabalho e de vida que cada sociedade estabelece para si. Ou seja: a vida dura do brasileiro não vai mudar se o Brasil voltar a crescer este ano ou se superar essa crise sem fim no ano que vem.
Sou um cara que se resolveu na régua do capitalismo brasileiro. Então não estou escrevendo aqui com qualquer mágoa ou ressentimento. Não estou falando do ponto de vista de alguém que perdeu o jogo. Ao contrário: foi nesse tabuleiro que ganhei as minhas medalhas. E é por isso que fico muito à vontade em criticá-lo.
Durante décadas, era comum pensarmos que o Brasil era um país muito bom para quem tinha dinheiro e muito ruim para que não tinha. Daí o Brasil ser considerado um país injusto.
De uns tempos para cá, o Brasil não funciona mais para (quase) ninguém. Viramos simplesmente um país hostil. Para (quase) todo mundo.
Um dos fatores que torna a vida muita dura para o brasileiro está expresso justamente naquela fotografia paulistana: temos que trabalhar muito mais do que, por exemplo, um cidadão de Sidney ou Lisboa para ter as mesmas coisas (muitas vezes, menos) que ele.
Precisamente pelo nosso modelo individualista, que renega o pensamento coletivo. O Brasil não é nem nunca foi para todos porque os brasileiros não se veem como iguais. Há os senhores feudais, há os vassalos e há os feitores.
E como cada um tem de resolver o seu, tudo fica mais caro para todos. Sem acordo com o vizinho, cada brasileiro tem que pagar por tudo sozinho. (Aqueles que podem – e azar que não podem.) A escola dos filhos, o plano de saúde, a segurança privada no condomínio, o transporte particular na garagem. Comprados em conjunto, esses serviços ficariam mais baratos.
Mais: o brasileiro tem que pagar por tudo duas vezes. Na Holanda ou na Alemanha, o sujeito paga quase o dobro de impostos. Mas não precisa mais se preocupar com várias necessidades básicas, que lhe são atendidas pelo Estado. No Brasil, a gente paga quase metade dos impostos na comparação com holandeses ou alemães, mas precisa comprar tudo de novo, no varejo. A conta final fica muito mais cara.
No Canadá, cuja vida estou começando a compreender mais a fundo, o fato de o que sujeito não precisa pagar individualmente pela escola dos filhos ou pela maior parte dos custos de saúde da sua família, por exemplo, faz com ele precise ganhar menos para ter uma vida digna.
Com isso, ele tem mais escolhas à sua disposição. Ele pode, por exemplo, trabalhar menos. Ou então investir seu dinheiro em outras coisas. As pessoas, de modo geral, se preocupam menos em perder o emprego. Entre outras coisas, porque há essa rede de segurança. Se você fica desempregado, seus filhos continuarão podendo ir à escola e ao hospital. Ou seja: você está muito mais empoderado para dizer "não" a um emprego ruim em Toronto do que no Rio.
Acontece o mesmo na comparação da vida em grandes cidades brasileiras com a vida em países como Itália ou França. Quando você não precisa trabalhar tanto para viver bem, para ter garantidas as coisas de que precisa, sobra mais tempo para cuidar de si. Para ficar com a família. Para dormir. Para mastigar bem e fazer a digestão. Para ler ou andar de bicicleta. Então você vive melhor. Sua taxa de felicidade aumenta.
O brasileiro, na comparação, vive pior – exatamente porque precisa puxar o arado 12 horas por dia. Vive mais insatisfeito. Noutros países, o sujeito trabalha para viver. No Brasil, cada vez mais, estamos vivendo para trabalhar.
Encerro sublinhando dois paradoxos que emergem dessa fotografia:
A primeira. O sistema de welfare, como se vê no Canadá, com um pouco de Estado "se metendo" na vida dos indivíduos, pode melhorar barbaramente a qualidade de vida dos cidadãos. (Note que o Canadá importou esse modelo da Inglaterra, berço do capitalismo e do pensamento conservador.)
A segunda. Grande parte dos brasileiros, com sua obstinação pelo trabalho, quando saem do Brasil experimentam grande vantagem competitiva, no mercado de trabalho, na comparação com muitas outras nacionalidades. O que é bom.
Por outro lado, às vezes os talentos brasileiros são criticados, por chefes, pares e subordinados, exatamente por sua dedicação ao trabalho. É comum brasileiros, em ação no exterior, trabalharem mais do que os locais. Por mais horas, fazendo mais coisas, sem, muitas vezes, ganhar a mais por isso. O que é bom, por um lado. E malvisto, por outro.
Desejo que você, neste ano que se inicia, consiga trabalhar melhor – e menos. E que lhe seja possível fazer isso no Brasil.