Ignorância ou má-fé?


Ignorância ou má-fé?

É absolutamente inacreditável a ignorância que parcela significativa de segmentos pertencentes à chamada elite demonstra da história e da realidade brasileiras. É o caso, por exemplo, de inúmeras manifestações relativas à atuação dos trabalhadores rurais sem terra, em que se chega ao absurdo dos absurdos de considerar que a legislação os beneficia e que o Judiciário e a polícia os favorecem.
Com tamanha ignorância -ou má-fé- jamais superaremos a condição de país mais desigual da face da Terra ou, para ficarmos em nossa vizinhança, de país com os piores índices sociais entre os países do Mercosul, conforme noticiou esta Folha (9/3).

Sem exceção, todos os estudos e pesquisas sobre a história social brasileira -inclusive os realizados pelo sociólogo e pesquisador professor Fernando Henrique Cardoso- demonstram de forma cabal e inquestionável que os trabalhadores, especialmente os do campo, têm sido vítimas da mais extremada espoliação ao longo dos cinco séculos de nossa história após a ocupação e a colonização européias.
Não só a legislação, mas também os poderes Executivo e Judiciário sempre estiveram a serviço da manutenção do "status quo", defendendo os interesses das minorias privilegiadas e oprimindo os trabalhadores.

A aplicação da legislação, que em si já é conservadora, pois formulada e aprovada pelas elites dominantes, difere em função do segmento social envolvido: rápida e eficaz quando se trata de defender o patrimônio e os interesses dos abastados; lenta e incompetente quando os interessados são os despossuídos.
No que se refere especificamente ao meio rural, poderíamos citar dezenas de exemplos da forma parcial como a legislação é aplicada. Vejamos alguns:

A Constituição Federal de 1988 determina a revisão de todas as doações, vendas e concessões de terras públicas com área superior a 3.000 ha realizadas no período de 1º de janeiro de 1962 a 31 de dezembro de 1987; o Estatuto da Terra, elaborado sob a coordenação do então ministro e hoje parlamentar Roberto Campos, estipula desde 1964 que todas as terras que não cumprem sua função social devem ser desapropriadas para fins de reforma agrária; o mesmo Estatuto proíbe que os imóveis classificados como latifúndios tenham acesso ao crédito rural oficial; as terras do Pontal do Paranapanema (SP) foram declaradas públicas, pertencentes ao governo do Estado de São Paulo, em 1921.
Esses dispositivos legais têm sido solenemente ignorados, uma vez que entram em conflito com os interesses das minorias privilegiadas que controlam o aparato estatal.

Da mesma forma, segundo a Comissão Pastoral da Terra, menos de 5% dos criminosos (e nenhum dos mandantes responsáveis pelo assassínio de aproximadamente 2.000 trabalhadores rurais e suas lideranças, incluindo padres e advogados, nos últimos 20 anos) foram condenados pela Justiça.

Infelizmente, os meios de comunicação, como que refletindo e ecoando a sociedade absurdamente injusta e desigual em que vivemos, frequentemente distorcem a realidade, enfatizando, mesmo que irrelevantes, eventuais aspectos negativos da atuação dos trabalhadores rurais que lutam pela conquista de sua cidadania.

É inacreditável que não tenham se dado conta da extraordinária importância e do significado excepcional do trabalho de organização realizado pelas lideranças junto a essa população de despossuídos. Não há em nossa história o registro de nada que se aproxime disto: a atuação organizada, consciente e responsável de mais de 40 mil trabalhadores rurais acampados em todo o país, afora outras dezenas de milhares que se encontram assentados, fruto desse trabalho.
Nesta mesma Folha (1º de dezembro de 96), Celso Furtado afirmou que se trata do "questionamento social mais
importante ocorrido no país no presente século".

Se não formos capazes de vencer a ignorância em que nos encontramos e de nos aproximarmos da realidade que nos cerca, será impossível a realização das transformações estruturais que nos permitirão superar a condição de país mais injusto entre todos os que foram pesquisados pelo Banco Mundial, que atribuiu ao Brasil o título de campeão mundial da desigualdade social.


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